sexta-feira, dezembro 22, 2006

O erotismo de Anaïs ou a escrita da ilusão


A chave da obra romanesca de Anaïs Nin (1903-1977) é o seu diário, laboratório da criação, criação ele próprio, varinha mágica contra o esquecimento, a passagem do tempo, confidente, refúgio de um mundo hostil, indiferente, penoso. A criadora de A Casa do Incesto considerava-o um "Baedecker da liberdade", guia de uma viagem interior, onde se avança na nudez, mas de rosto mascarado. É essa voz cultivada e cosmopolita que se oferece para logo se derrubar num ritmo jazzístico, cujo sopro a autora queria reconstituir pela escrita, não apenas na perversão da objectividade do real, mas na reflexão subjectiva sobre a experiência.

O Journal de Anaïs dir-se-ia o reflexo da sua luta constante contra a realidade. Por ele passam a relação com o pai e os amores/paixão (Henry e June, Eduardo, Rank...); a vida conjugal com Hugo; as cidades e as viagens; a noite e a nostalgia de um corpo vazio ou jubilatório; a escrita e o erotismo, a imaginação e a fantasia; Paris ou o México; os autores da sua predilecção, "três deuses das profundezas", Dostoievski, Lawrence e Proust; e os amigos, de Artaud a Duchamp, de Durrell a Brancusi, de Dali a Duras.

É, portanto, uma voz diarista a de Anaïs, voz sussurrante tão poética quanto intelectual que atravessa os milhares de páginas do Journal, sem o qual não é entendível de forma satisfatória o sobressalto da sua ficção onírica que tantos dissabores lhe trouxe com as editoras. Condenada a não deixar Los Angeles nos últimos anos de vida, a escritora publica por poucos dólares, oferecidos por um coleccionador, uma recolha de contos eróticos escritos nos anos 40. Graças a Passarinhos (Little Birds) - agora publicado entre nós pela Bico de Pena -, o seu nome figurará pela primeira vez, e alguns meses após a morte, na lista dos best-sellers da Europa e dos EUA, suprema ironia que teria decerto apreciado, ela que se arriscou a a revelar-se (e aos outros) no seu vasto "atelier clandestino", o imortal diário para o qual viveu e por meio do qual tentou observar, reflectir e compreender o mundo.

No prefácio de Passarinhos, Anaïs Nin confessa ter sido "ma-dre confessora de uma "invulgar casa de prostituição literária", acrescentando que a maior parte dos contos, escrita desesperadamente por dinheiro, foi feita com o estômago vazio "Ora a fome é óptima para estimular a imaginação (...) Quanto maior a fome, maiores os desejos, como os dos homens na prisão, desenfreados e obsidiantes."

Anaïs Nin cultivou a " flor do erotismo" com a sua sensibilidade poética e romântica, melancólica e insinuante, transformando o corpo, o sexo, a inteligência do desejo numa ficção subterrânea que liga indefectivelmente um ser a outro em múltiplas orquestrações. E fê-lo nunca enveredando pela obscenidade à maneira de Miller ou Moravia, nem mesmo de certa prosa e poesia de Hilda Hilst.

O discurso pornográfico exibe uma sexualidade sem mistério numa perspectiva descritiva e fria, vulgar até à náusea, usando o corpo como objectivo do enredo, apenas atento à satisfação imediata, e assim rompendo o contrato tácito que faz mover a roda do desejo não expor demasiado. O erótico, como o de Anaïs, é apresentado na linha de uma subjectividade sedutora aliada aos poderes do imaginário e a uma estética feminina alheia à crueza; entrelaça-se, pois, com o trabalho da ilusão, do encantamento, do claro-escuro. A avaliação dos limites deste tipo de literatura torna-se, porém, muitas vezes difícil - mesmo nestes contos - consoante a moldura social, moral, religiosa e cultural dos leitores que dela se aproximam.

O sexo não é só corpo na obra de Anaïs, sobretudo em certas passagens do diário. Dir-se-ia esquecimento do corpo, tornando-se este mundo, paisagem, colapso, memória, acto. Os contos de Passarinhos, na sua irregularidade, não são dos mais belos textos da escritora, trazem-nos, contudo, a voz sensual e intensa de uma mulher que achava que nesse campo a linguagem, durante séculos nas mãos dos homens, estava por inventar, continuando a ser território inexplorado.

Time of Peace


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A peace of freedom... Melody